Me virando
35 anos me espantando comigo.
O que sei de mim, antes de mim, é que meu nome teria sido Márcio Vítor.
Lembro de escrever a lápis com a letra bem miudinha nas paredes da minha casa, escondida. Desenhava meu nome. Às vezes, um coração. Simples assim: escolhia um espaço naquela imensidão de gelo-brancura e assinava, criando entre mim e as muralhas no meu entorno uma sequência de pequenos segredos que, depois, viraram esconderijos sem mapa.
Fui criança. Jurava que tinha o poder de falar com as plantas.
Brinquei com embuás, traças, soldadinhos, lagartixas.
Até hoje sinto saudade do Toffy, meu cachorro que era preto e ficou cinza e morreu branco. Deu o último suspiro nos meus braços enquanto eu o embalava como um bebê, no banco de trás do corsinha verde, à espera da abertura do consultório veterinário. Vivemos juntos por 18 anos.
Gosto de me sentar no chão. Para ler. Para trocar. Me escorrer.
Gosto de me jogar em braço de sofá, de me pendurar em balanço de corda, de me equilibrar em batente de praça. Gosto de andar de pé descalço, mesmo que escute, no subconsciente, a repreensão de Dona Lindaura me chamando de teimosa, me mandando ir colocar um chinelo.
Passei anos achando que as covinhas do meu rosto tinham sido moldadas pelas mãos de minha madrinha quando eu ainda era um bebê.
Me enganei.
Me entrego. Me provoco. Me deixo encontrar.
Não imaginei que pudesse sentir tanto amor na vida como quando nasceu minha irmã. Por quem eu prometi a Deus que leria a bíblia júnior inteira se Ele a curasse da suspeita de meningite. Cumpri.
Conversei com Deus pela poesia dos olhos dos meus avós. Viajei com Deus por matas e templos e cachoeiras. Conheci o Verbo. Me dei conta que a criação morava no sol do lado de dentro.
Me apaixonei pelo melhor amigo. Me apaixonei pela melhor amiga.
Descobri o colorido das falésias entre as pernas.
Odiei meus dentes, meus pés, minhas sombras.
Enumerei toda uma cascata de solidão para o meu pai. Coloquei o aviso “Bata, antes de entrar” na porta do quarto da casa onde morava com minha mãe.
Tive momentos de pequenez, de amargura, de covardia. Errei como se erra quando a gente se implica em estar vivo. E me puni muitas e muitas vezes por não saber me perdoar.
Guardei tanta raiva não dita que precisei cuidar das dores na mandíbula.
Perdoei doendo. Perdoei gentil.
Vejo mainha em todo gesto de ternura que ofereço. Herdei dela o sorriso fácil, o pensamento mais rápido que rapidamente, a sensibilidade em excesso, a inteligência da escuta. Herdei de mainha a coroa na cabeça.
Já painho vejo na espinha de toda palavra que escrevo. Dele, herdei o interesse pela leitura, a angústia de sentir as dores do mundo, o apreço pela cor azul, a inteligência da fraternidade. Herdei do painho o formato, a grandeza e a cor castanha dos olhos.
Analiso sonhos.
E se me entusiasmo com o caminho é porque ainda acredito: usar a palavra com coragem ainda vai nos tirar do palimpsesto.
Prefiro o amor. A lealdade. A paciência. Prefiro a gratidão. Prefiro.
A maturidade tem sido uma delícia para a paz de espírito. Estou sendo o que tiver de ser.
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Neste sete de novembro, faço 35.
Obrigada, amigues, pelo presença tão iluminada em minha vida. Tem sido massa construir tanta memória com vocês. ❤️


Tu faz o aniversário e quem ganha o presente é a gente.